sábado, 12 de março de 2011

Crítica: “Por toda minha vida” sobre Cartola expõe as chagas de uma sociedade que não reconhece seus artistas.


Conseguir assistir o programa “Por toda minha vida” exibido pela TV Globo é um feito. Horário sempre insalubre, pouco divulgado, enfim... Mas quem, até por acidente, assistiu, não pôde sair de outra maneira senão dilacerado. O programa exibido ontem à noite homenageou o compositor, intérprete e fundador da Mangueira, Cartola. Na homenagem vimos um artista encurralado pelo destino que vai desconcertar o telespectador. E para construir um enredo, “sem saída” e apto a comover, não é só sair "juntando" o artista nos pedaços que ele deixa. É juntar os pedaços que interessam. Os detalhes de como isso vira uma história sobre um ideal, valem a pena observar.

O programa abria com o depoimento de uma familiar do homenageado falando sobre a impressão do próprio Cartola sobre sua vida: Igual filme de mocinho, ele só venceu no fim. Uma cena: entra num boteco um jornalista e, ao encontrar aquele homem magro, com aspecto cansado, mas sorridente, surpreende-se. Cartola está vivo!_ diz ele e vai ao encontro do personagem

Senhoras e senhores, o Cartola dos realizadores

Mas Cartola não retribui com a mesma efusividade. Sorri tranquilo pro jornalista. “Estou mais pra morto, que pra vivo”_ diz ele. Sorriso de quem está feliz apesar de trazer tristeza. A cena é forçada, a atuação não é lá grandes coisas, mas tá dito. Não fosse o fato de sabermos o que a entrevistada já disse, que ele vai vencer no final, seria de uma desesperança tremenda aquele gesto.

No docudrama, dirigido por Ricardo Waddington, temos um Cartola que é acima de tudo cônscio da sua sina. Ele sabe. Ele sabe e conhece tudo. Ele sabe música, ele sabe que dói, ele sabe sorrir, sabe que vai doer mais, sabe da sua vida, sabe de sua morte. O personagem lúcido ganha essa solidez verdadeira já que a marca principal do compositor é ter gravado o primeiro disco já na velhice, quando já era (Adivinhem só! ) Experiente. E pessoas experientes sabem.

Artista e obra: Amarrando as pontas do enredo.

Ele sabia de tudo, mas como pode? Teve educação insuficiente, morou em vagões de trem, foi lavador de carros. O que diabos pode saber esse moço?_ mais uma vez, ponto pra a construção do personagem: O roteirista encontrou o paradoxo perfeito. Cartola era o artista experiente, portanto, sabido. Mas não tivera, em primeira instância, acesso ao saber.

Ele sabia o mais importante. Cartola sabia que as rosas não falavam. “Achei tão bonito isso.”_ diz o próprio Cartola em entrevista resgatada do material de arquivo. Sua mulher tinha perguntado como as roseiras podiam estar sempre floridas. E como saber disso? O que os artistas sabem é o impossível.

E se o protagonista sabe, e o telespectador sabe que ele sabe? É aí que dilacera. A trama é construída sobre as impossibilidades. Impossibilidade do homenageado estudar música, de ter filhos, de vencer sozinho num mundo que não reconhece sua importância. Temos ainda a impossibilidade do telespectador se iludir_ pois este já conhece o final trágico da história. O sentimento que marca o personagem do roteiro, portanto, é o da falta de autonomia que este tem sobre o destino e sobre o quanto somos falíveis.

O roteiro atinge seu ápice embalado pela música “Autonomia” composta por Cartola quando soube que lhe restava pouco tempo de vida. A morte ia lhe levar e, como diz a letra, se ele pudesse, não iria. Mas, esse é o enredo das impossibilidades.

Cartola tem, como qualquer pessoa nesse mundo, várias faces, mas foi uma bonita escolha a do diretor de ter escolhido o ângulo das coisas que não eram possíveis. Como prova, vejam as escolhas de músicas destacadas: “Amor proibido”, “O mundo é um moinho”, “As rosas não falam”, “Acontece”.

Tristeza?

Porque afinal, dilacerar falando de impossibilidades, é gerar faísca pra falar do impossível. Que entre uma impossibilidade e outra, o impossível, eventualmente, acontece. Afinal, a vida doída do herói precisa machucar, mas machucar de maneira que traga alento. É tarde da noite de sexta, todo mundo quer esperança ao assistir uma biografia, e lá está ela: Com toda a adversidade, com toda a falta de armas, frágil nesse mundo, Cartola vira a realização do impossível. Ele vence. Vence no fim, mas vence. E não te custa nada crer que, no final, o impossível pode ser possível. Impossível é voltar a vida depois de morto. E lembre do que o jornalista disse na primeira cena: Cartola está vivo!

>> O que já foi dito sobre o assunto: aqui e aqui